Conforme os dias vão se passando me parece mais claro que os esquemas de tolerância empregados pela maioria das pessoas não são exatamente tolerantes. Que possuem uma estrutura moral interna de exigências e que qualquer um que fuja desse padrão é um incomodo. Falo isso por um recente conflito em relação à linguagem: um conflito entre formalidade e coloquialidade, no qual um indivíduo, não dominando a linguagem que eu estava usando facilmente, deveria fazer esforço mental para uma tradução piegas, o que torna a comunicação estressante. Então qual é o resultado: sem qualquer tipo de reflexão a respeito da natureza da estrutura lingüística e, ainda, sem qualquer tipo de ponderação da necessidade do uso dessa estrutura, projeta emoções. A linguagem, parece, se resume a um termo: arrogância.
Em termos, mas claros, falar com uma linguagem mais culta é um sinal de que você se considera melhor do que os outros. Devo mesmo começar a falar sobre qual absurda é uma proposição como essa? Primeiro que há tantos critérios valorativos pra “melhor” que até formular a frase já é algo infinitamente ambíguo. É claro que, pra quem fala, o significado é obvio, pois todo mundo usa a mesma linguagem, correto? De maneira alguma!
Na realidade, dentro da nossa própria língua há uma série de dialetos que se referem a diferentes camadas da sociedade. E não só aqui: lembro que, quando baixei a primeira temporada da série sons of anarchy, muitos comentários ao torrent no pirate bay se referiram à legendas em inglês com agradecimento. Mas ora, se estavam comentando em inglês e os personagens falam inglês, porque as legendas eram tão importantes? É simples: as gírias e atalhos de linguagens dos californianos, o próprio sotaque deles, torna a interpretação mais difícil.
Isso não acontece só no nível do sotaque, mas varia segundo a dimensão do léxico de cada um e, especialmente, pela forma como frases são construídas. Se isso não está claro, cabe aqui desenvolver um exemplo.
1 – koé, cara, tu sabe aquela parada lá de condicionamento operante?
2 – Se eu sei o que é isso.
1 – É, aham.
2 – sei sim.
1 – po, tem como me explicar? Na moral, to perdidão.
2 – Condicionamento operante é um tipo de condicionamento onde o reforço punição são fornecidos como conseqüência das ações do indivíduo. É implícito no termo operante se você for ver.
1 – como é que é? explica de novo…
2 – Quando um macaco pega um graveto e alcança a banana, o comportamento de apanhar o graveto e usar como ferramenta é se fixa nele por condicionamento.
1 – ah ta. Tipo assim, quando o maluco faz uma coisa e as conseqüências são boas, daí ele é reforçado.
2 – por aí. Claro que no caso da psicologia comportamentalista isso é feito de maneira controlada, então é mais uma recompensa dada nem sempre é uma conseqüência natural daquele comportamento.
1 – ta bom, cara. Já entendi. Precisa ficar falando pra cacete não.
2 – foi só um detalhe que pareceu ambíguo no que você disse.
1 – Na moral, porque você é assim?
2 – Assim como?
1 – porra, fica falando difícil. Fala normal, cara.
2- eu falo normal. O meu normal, pelo menos.
1 – tu é estranho, cara. As pessoas te acham arrogante.
2 – mas a minha linguagem é obviamente mais funcional, pois descreve o conteúdo com menos ambigüidade. É por dominar essa linguagem que não fico gaguejando sem saber como falar algo pra professora.
1 – Ta bom, não tom com paciência pra essa palhaçada não. Vai se amostrar pra outro.
Fim da cena.
Nesse trecho de diálogo, podemos observar diferentes estruturas lingüísticas e, conseqüentemente, diferentes estruturas de raciocínio interagindo. Num campo emocional, a personagem 1 foi pragmática e tolerou a diferença enquanto isso foi conveniente. Quando ela julgou ter obtido a informação necessária, tudo o que veio depois não seria tolerado, mas ouvido pessoalmente. Como foi necessário esforço intelectual pra assimilar a linguagem diferente, houve estresse.
Além disso, é obvio que camadas mais educadas e elevadas economicamente da sociedade tendem a utilizar essa linguagem normalmente. Não preciso dizer que essas camadas são detestadas de um modo geral, quando não são úteis, preciso? Quer dizer, todo mundo ama o cientista quando ele inventa uma nova bateria, mas o detesta se ele está numa sala de aula falando algo que precisa ser compreendido. Afinal, o povo brasileiro só encarna sua verdadeira identidade no carnaval, quando pode viver sua própria selvageria sem ter que prestar contas, sem se preocupar com reflexão, ética ou qualquer outra coisa complicada e que não trás “sensações fortes”(claro que, quem entende um livro de Schopenhauer e gosta do autor, terá muitas sensações).
Mas isso só vem piorando. A personagem 2, como se pode ver, não é um professor ou cientista, para o qual a arrogância é minimamente legitimada. É só um aluno, que apresenta uma linguagem considerada arrogante (que exige esforço mental dos preguiçosos) sem legitimação nenhuma, sem obrigação de “falar difícil”. Que só fala do jeito que fala pra esnobar os outros e se exibir como pseudo-intelectual.
Mas um fato permanece: embora próxima do conceito de condicionamento operante, a definição de 1 foi algo simplória e não considerou a metodologia de Skinner ou a linguagem científica na qual o conceito é formulado. Em termos claros, a linguagem de 1 foi imprecisa e, portanto, disfuncional ao definir o conceito. A linguagem de dois começou a tentar expandir a noção e torná-la mais precisa, o que exigiria esforço da outra parte. Quer dizer, ao invés de ter causa emocional, a explicação de 2 teve uma causa racional: tornar preciso o que a linguagem do outro havia falhado em definir.
Ao invés de ser hostil, 2 estava tentando ajudar, o que pareceu exibicionismo a 1, que, por não dominar a linguagem, precisa fazer esforço de tradução, coisa que não é necessária pra 2.
O resultado, em termos de tolerância, é que 2 tolera a linguagem de 1, mas a recíproca não é verdadeira. Enquanto 1 diz que 2 está cheio de si, o primeiro é incapaz de reconhecer que talvez 2 fale assim mesmo e, mais ainda, não está disposto a tentar dialogar. Assim, cria termos pejorativos que justifiquem a atitude de ignorar o outro e colocá-lo num patamar emocionalmente inferior. 2, por outro lado, tanto tolera quanto se esforça pra interpretar a linguagem consideravelmente mais ambígua de 1 sem ao menos reclamar. Agora, de um ponto de vista ético, que será que está sendo tolerante?
O que aceita a linguagem do outro e tenta se comunicar ou o que segrega e persegue o outro por sua linguagem? Acredito que o leitor que chegou até aqui sabe a resposta a essa pergunta.
Mas uma questão fica: será que 1 conseguiria dominar a linguagem técnica de 2 se quisesse? Afinal, se isso não for possível, a adaptação lingüística se fará necessária. Isso é especialmente válido em relação a encontros curtos, como apresentação de palestras direcionadas para as camadas populares. Afinal, não se aprende uma linguagem nova num dia!
Mas num ambiente universitário, onde a compreensão precisa de conceitos (não da realidade, pelo amor de Deus, seja lá o que realidade signifique) é essencial isso é algo básico!
Como alguém pode ser tão estúpido ao ponto de achar que o outro se acha dono da verdade só porque ele usa uma linguagem culta? Ora, se o outro lhe diz que ele não pensa ser dono da verdade e se ele admitir questionamentos, é sensato rotular sem ao menos se esforçar pra entender o que ele diz?
Afinal, se formos fazer o esforço contrário, a pessoa que domina a linguagem culta teria se usar a linguagem coloquial como recurso retórico, pra parecer mais convincente. Isso é eficaz, mas, francamente, é desonesto.
Às vezes me pergunto porque fui nascer nesse mundo primitivo e intolerante onde pessoas mal dominam a porcaria do pensamento formal! Será que o preconceito é sempre de cima pra baixo?